Há alguns dias atrás, em Viseu, um grupo de jovens irrompeu na sala onde o então primeiro-ministro, José Sócrates discursava, com tarjas e gritos e braços levantados e saltos na atmosfera, numa clara manifestação de protesto contra a "situação actual" dos professores e dos serviços públicos.
Mas, afinal, contra que situação actual é que eles protestam?
Se calhar nem eles sabem e se lhes perguntassem provavelmente obter-se-iam frases feitas como "porque o governo não sabe governar, porque o desemprego aumenta, porque o preço da gasolina aumenta, porque o FMI está a bater à porta, porque o FMI já não está a bater à porta, porque está a destruir a saúde, porque são todos uns ladrões corruptos, porque obriga os professores a serem avaliados por um processo muito trabalhoso e mal concebido, porque o Benfica não é campeão...". Descontando a clara provocação ao Benfica, o rol de chavões, ainda que contendo verdade, não são realmente compreendidos por 99% das pessoas que se manifestam. Diria mesmo que 99,99% desses manifestantes não apresenta soluções alternativas nem tem, infelizmente, capacidade para o fazer.
Mas nós gostamos de festa. As manifestações são a oportunidade de fazermos uma festa e colectivamente fazermos o que os adeptos de futebol fazem nos estádios - gritar impropérios - e fingir que temos, de facto, algum poder para lixar alguém que nos lixou a nós. E também porque sabemos disto é que não damos importância às manifestações. Toda esta altercação é apenas movida por um sentimento de vingança e não por uma vontade de mudança ou progresso genuína porque a maior parte de nós, povo, não tem a capacidade de medir o progresso. Não temos capacidade para perceber como mudar as coisas mas temos a ambição de obter para nós tudo aquilo que pudermos e só conseguimos ver e perceber o caminho do roubo e da corrupção que é, aliás, o único que nos é exemplificado. Somos nós, os corrompidos, que nos tornamos os corruptores (Pavlov acabou de sorrir na tumba).
Naturalmente que apenas uma ínfima parte de nós chega a tais cornucópias de regabofe, ficando os restantes limitados a assistir através da janela a essas festas faustíssimas, mesmo no caso de termos participado activamente com o nosso voto e com a nossa presença nos jantares, e inaugurações-comício, mesmo tendo desfraldado as bandeiras nos carros em movimento, perigosamente empoleirados nas janelas ou perfurando os tectos de abrir com o nosso corpo e a nossa vontade, mesmo tendo aplaudido efusivamente cada palavra e cada gesto do líder do "nosso" partido e andado à porrada nos cafés e nos largos da feira com os nossos oponentes, às vezes até com contacto físico. Mas é quando nos apercebemos que temos meias rotas nos pés e espreitamos, através da janela embaciada, as meias bordadas a ouro penduradas nas chaminés dos outros, à espera do pai natal, que nos revoltamos. Também queremos umas meias iguais! Umas meias sem buracos e sem fundo! E é nessa altura que sentimos a dor de corno no seu apogeu, dor que fica recalcada à espera da primeira oportunidade para mugir numa tourada, mesmo que ostentando os ferros que nos foram sendo cravados no lombo. E quando a oportunidade surge, lá vamos todos em manada, a mugir em uníssono numa cacofonia de côr e som.
Outro aspecto interessante destas manifestações e que anda de braço dado com o desejo de vingança, é a restauração do sentido da vida em duas a três a horas de êxtase e comunhão emocional. Utilizamos estas manifestações públicas para nos sentirmos parte de algo maior que nós, algo que perdemos com o desmoronar do nosso império de ontem, construído sobre toros de madeira flutuante ao sabor de especiarias e outras riquezas. Agora não somos nada nem ninguém, encostados neste canto da Europa que perdeu a centralidade e cuja voz é ouvida por favor ou por educação mas não é realmente tida em conta no grande plano das coisas, nesse olimpo onde são tomadas as decisões. E todos nós gostamos de participar, de saber, de fingir que opinamos e que influenciamos e que empurramos as rodas dentadas que movimentam a nossa realidade, mergulhando numa ilusão que oculta a nossa verdadeira impotência e irrelevância.
Não sabemos para onde ir nem como lá chegar. Mas basta escolher uma bandeira, atá-la aos cornos do infeliz que for à frente e lá vamos todos, em manada, a satisfazer o nosso sentido de pertença. E como nós precisamos de pertencer a algo, de nos enquadrar num contexto, de perceber que a nossa vida infeliz tem um sentido para além da luta inconsequente do dia-a-dia!
Aconteceu com Timor. Acreditam realmente que as camisas por fora dos carros, os concertos de apoio, as manifestações de repúdio a Jacarta tiveram algum impacto? Penso até que a presença das nossas forças militares em Timor só aconteceu porque Xanana Gusmão teve medo de lidar com potências que ele próprio desconhecia, preferindo que um país pequeno como o nosso os "ajudasse" a manter a ordem, sem correr o risco de uma ocupação em substituição, por exemplo pela Austrália, sabendo perfeitamente que Portugal não teria poder militar ou económico para o fazer ou até poder político para um neocolonialismo sancionado por uma ONU. E no entanto, todos gritámos "Timor livre"! O massacre do cemitério fez mais pela nossa auto-estima que pelos próprios timorenses, por mais triste que seja admitir que o mal dos outros nos faz bem.
É por tudo isto que eu acho deplorável que aconteçam manifestações como a de Viseu. É por tudo isto que eu acho que são inúteis manifestações pacíficas como as que aconteceram por todo o país. Todos intuimos que não servem realmente para nada a não ser ter duas ou três horas de prazer emocional. Se é para isso, mais vale ir à missa, ao cinema ou a casas nocturnas.
Tudo o resto serve apenas para que alguns possam continuar a manipular-nos contra outros perpetuando a nossa bestialidade enquanto se refastelam nos despojos.
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