domingo, 7 de março de 2010

A partilha

A partilha é uma necessidade humana. Dizemo-nos animais sociáveis, quiçá indissociáveis da pertença a um grupo mesmo que alguns o contestem e se isolem, mas essa sociabilidade assume diversas facetas consoante as necessidades de cada um.

Isolei seis tipos de comportamentos no que diz respeito à partilha e, como de costume, satirizo-os para os conseguir partilhar convosco :)

1) Os avarentos - não partilham nada. Tudo não é demais. Normalmente não se dão a conhecer a ninguém. Estas pessoas são uma espécie de buraco negro, sorvem tudo o que conseguirem com medo que lhes faça falta em algum momento. Por isso mesmo acabam por ser bons ouvintes, desde que não se espere nenhum conselho ou palavra de conforto, que a não saberiam dar. A palavra partilha só lhes aparece à frente uma vez na vida - quando morrem... e o Estado vai buscar tudo aquilo que guardaram.

2) Os desgraçadinhos - apenas partilham as coisas más e guardam as boas para eles. É alguém que te deixa sempre com o coração apertado enquanto estás com eles, ou de uma forma mais brejeira, seriam estes os tipos que, se nascessem de cú virado para a lua, não a chegariam a ver, por razões que agora não quero aprofundar :). São pessoas sofridas, normalmente vão piorando com a idade e até podem ter razões muito válidas para a sua forma de ser. Contudo, tal é o hábito e a necessidade de serem os mais desgraçadinhos que acabam por ganhar o gosto a esse discurso. Curiosamente, mesmo que não sejam uns desgraçadinhos aos vossos olhos, acreditem que o são! É o mesmo processo da repetição de uma mentira - de tanto o forçarem acabam por vivenciá-lo. A característica principal é muito fácil de detectar. Há duas maneiras de o fazer. A primeira acontece quando se está a falar de uma situação, seja ela qual for, mas funciona especialmente bem se for triste. Observem bem a atitude da peça enquanto contam a história: de repente, os cantos dos lábios descaiem como se a gravidade se abatesse apenas sobre aquela ínfima parte da boca, a cabeça move-se um pouco para a frente e para baixo, como se suplicassem à inquisição por um copo de água antes de arder na fogueira, os dedos das mãos entrelaçam-se uns nos outros, enclavinhando-se como se se estrangulassem mutuamente e os olhos escondem-se, semicerrados, encarcerados nas rugas que entretanto se formaram nas suas extremidades, sublinhadas pelo franzir das sobrancelhas e da testa. A pessoa parece que diminuiu... até ao momento em que te interrompe e diz: "pois comigo, é muito pior..." e aí, cresce, cresce, cresce, e nós diminuímos, diminuímos... e se pudéssemos desaparecíamos. A segunda, acontece na mesma altura, mas aqui, o nosso interlocutor tem algo de muito importante para dizer, algo que vai tornar a situação que se relata tão pequenina, tão mesquinha em face àquela que ele conhece, que ele mal aguenta de excitação e assim que paras para respirar... já foste, porque aquele segundo foi o tempo suficiente para encaixar o tradicional "pois comigo, é muitíssimo pior!" Os traços físicos aqui são semelhantes aos de cima e tirando a pontinha de baba que às vezes dá o ar da sua graça, a única diferença encontra-se nos olhos que, ao invés de semicerrarem estão abertos e quase pulam das órbitas tal o entusiasmo, a muito esforço contido, todinho concentrado nos vasos sanguíneos que ligam as órbitras ao cérebro. Porquê aí?! Porque ele está MESMO a ver, MESMO MESMO a ver que a história dele vai suplantar esta no desgraçómetro oficial. Se virem alguém neste estado nunca lhe virem as costas. Pode morder.

3) Os paternais - Estes são os compreensivos. Não julgam ou aparentam não julgar porque sentem que isso lhes dá um certo ar de superioridade sobre os outros. Não julgando, são bons ouvintes e tentam ajudar os outros de forma bem-intencionada, desconhecendo se o que dizem tem de facto alguma razão de ser ou se é apenas um saco cheio de nada. Por norma são pessoas que não conseguem enfrentar elas próprias as situações e as confusões que observam nos outros e por isso evitam-nas virando-lhe as costas. Mas quando se trata dos outros a história muda de figura e lá estão eles, qual cavaleiros andantes, a aconselhar as donzelas em perigo. Porque são incapazes de enfrentar as situações são os primeiros a partilhar com os outros aquilo que pensam e aquilo que pensam sentir, porque é a maneira que encontram de obter uma validação empírica para o que poderia ter acontecido se tivessem dado o passo em frente. No prática, também estes utilizam os outros como objectos de teste, mas não o fazem de forma maldosa, apenas como expressão da sua cobardia.

4) Os esfíngicos - estes não têm sentimentos próprios ou se os têm não lhes dão importância, mas estão sempre disponíveis para ouvir os outros porque isso de ter sentimentos deve ser importante e desperta-lhes a curiosidade natural de quem está a estudar um fenómeno estranho e rico. Como objecto de estudo, os sentimentos são algo que tem características, propriedades e métodos. Também devem ter uma função mas essa escapa-lhes, talvez porque os sentimentos são ambíguos e idiomáticos, expressões que contextualmente adquirem propriedades diferentes tornando o modelo demasiado complexo para se apreender sem recorrer ao estudo continuado. Naturalmente um estudo dessa natureza não é possível porque não é razoável colocar as pessoas dentro de redomas para analisar comportamentos, nem há garantias que os comportamentos se manteriam dentro da redoma ainda que tal fosse possível. Assim, não fazem mais do que ouvir sem compreender, porque não conhecem um modelo com o qual possam comparar esta nova realidade. Por isso, os esfíngicos partilham o espaço e a forma mas não o conteúdo. Como partilhar o que se não tem?

5)Os emocionais - partilham os aspectos bons e maus da sua vida. Para estes tudo faz parte da experiência a que se chama viver. São uma espécie de hippies auto-controlados porque tudo é possível até que alguma coisa não o seja. Normalmente nunca se sabe muito bem onde é que está a barreira - é volúvel e hoje é assim, amanhã é de outra maneira e depois de amanhã sabe Deus. A grande vantagem para quem dialoga com estas pessoas é que da mesma forma que a barreira do admissível se move também a memória se adapta e por isso, o que ontem estava mal hoje está na maior... e assim se evitam rancores e conflitos. Ontem?! O que é isso? Claro que esta situação também é desgastante para os outros - é como viver numa caravana e andar sempre em movimento e dormir em parques de estacionamento diferentes. Tentem fazer estas pessoas seguir um plano e preparem-se para umas úlceras nervosas no estômago... ou nos arredores do estômago, que isto da variabilidade toca em tudo.


6)Os Espalhafatosos - partilham excessivamente todos os aspectos da sua vida. Precisam de se sentir o centro do mundo e a explosão de emoções que sentem e não conseguem dominar sobrepõe-se a qualquer outra forma de comunicação. São demasiado expressivos, demasiado interventivos e demasiado ansiosos. Não chegam a interromper conversas porque não concebem uma conversa que não seja começada ou terminada por eles, pontuada com uma gargalhada cavernosa ou uma lágrima cristalina. Sim, é verdade. Se essa pessoa estiver calada a olhar para ti enquanto falas, não te está a ouvir. Está à espera da oportunidade de pegar numa palavra tua e explicar porque é que é assim ou de outra maneira. Nem sempre os temas coincidem. Por norma as conversas acabam como começam: "Estou-te a dizer que foi uma galhofa" (gargalhada e braços a gesticular ou movimentos bruscos na cadeira, se sentado). Se entretanto não tiver entornado o copo de vinho branco da senhora ao lado, vai pelo menos tirar-lhe o prazer de o beber, dado que logo de seguida diz "só foi pena que tenha acabado assim coitadinho, só sobraram as pernas, uma delas na valeta... e a outra a uns cem metros em cima da azinheira...(cara de enterro)" e a pedra de toque, antes que alguém diga alguma coisa, "razão tinha eu para dizer que o projecto não tinha pernas para andar HAHAHAHAHAHAH". E se o vinho branco ainda estivesse no copo era agora que desaparecia... com um penalty.

8 comentários:

Sparkle disse...

Hum gostei. E onde te encaixas tu? Nalgum destes? Nos que se precisam de colocar de fora? Nos que precisam de desdramatizar para que aquilo não afecte, dando pouca importância ao que os outros sentem ou querem fazer sentir e assim mostrando-se superiores?
E a mim já agora onde me colocas? No 3? No 5? Gostava de saber, eu aguento lol e é sempre bom ver como nos vêem os olhos dos outros, aprende-se muito! Kiss. :)

Gelo disse...

Tu, no 5 nunca! Mas não vou comentar mais, mesmo porque não acho que todos os tipos se tenham esgotado.
:)

bjk

Sparkle disse...

Claro ainda faltam os "invasivos estrategas"… não é Gelo? ;-)

Gelo disse...

uuuuuuiiii... isso soa muito mal !!
:)

Beatriz Lamas Oliveira disse...

então e onde se podem meter as "boas pessoas"..nos paternais?
eu estava a ler os atributos dos desgraçadinhos e a ver o Tartufo...devia haver aqui nesta classificação lugar para os cínicos,pois estes são esfíngicos, mas não só, pois utilizam os sentimentos (dos outros é certo).
Quero ler mais!!
Abraço!

Gelo disse...

Bea, essa é uma boa questão :)
andei um pouco às voltas a decidir se enquadrava os "bonzinhos" em algum perfil ou se os evitava propositadamente... aliás, será que existe o perfil de "bonzinho"?!

Beatriz Lamas Oliveira disse...

podemos arranjar um perfilzito para os "bonzinhos"_o perfil dos medianos,dos poucaxinhos,dos sentimentais,dos fadistas..enfim ..dos burritos...lol lol

PSousa disse...

Gostei de me rever :)