domingo, 24 de outubro de 2010

Criatividade

Criatividade é a fusão de dois conceitos pela ordem inversa: Actividade e Criação.
Gosto de pensar nela como a actividade de criar, mas não me fico por aqui. Dito assim, a criatividade parece algo maquinal, visceralmente ligado à execução quando, na realidade, não é nada disso. A criatividade surge da necessidade e do prazer da descoberta, característica que retemos da nossa infância, onde tudo era novo. A criatividade nasce da paixão que aplicamos na junção de elementos, nasce do amor com que cozinhamos e transformamos esses elementos para criar algo que seja único, na medida em que está imbuído de sentimentos nossos, de contextos próprios, específicos, dificilmente replicáveis.

É por isso que uma pintura de Picasso é uma obra de arte especial e valiosa e uma cópia exacta da mesma obra não passa disso mesmo - de uma cópia, coxa de contexto, despida de sentimentos, caricatura das emoções que lhe deram luz. E se imitar pode ser uma arte por direito próprio, nunca será mais que uma amostra da verdadeira fragrância que emana de um original.

Neste contexto, criar não é apenas o acto de construir algo mas sim o de construir algo de novo, algo de diferente. É também um acto de amor, na medida em que criar implica amar e construir pode ser apenas um movimento mecânico. Pode construir-se algo e repetir essa criação as vezes que forem necessárias, mas a criatividade inerente a essa obra esgotou-se no momento em que foi originada. O depois resume-se à partilha, à divulgação à democratização e exploração dessa ideia ou obra primordial.

É por essa razão que um quadro branco com uns rabiscos (lembrei-me do Miró, vá lá saber-se porquê...) pode ser algo criativo. Não apenas porque é novo e diferente, mas porque tem um contexto que tem relevância para o autor e para os "consumidores" de arte. Eles reconhecem-lhe a individualidade e descobrem ou partilham as emoções. Da mesma forma uma ave de plasticina, meio deformadita e com o bico desproporcional, manufacturada pelos dedos pequeninos de uma criança, representa a aplicação da sua criatividade - é a expressão dessa criança do seu conceito de ave, de acordo com a sua capacidade, a sua percepção e a habilidade com a plasticina. Tu poderias fazer melhor? Seguramente que sim se, para ti, melhor for uma ave mais próxima do ser vivo real, ou algo diferente mais próximo do teu conceito de ave.

Ainda não há muito tempo participei num workshop de desenho e nesse workshop o formador dizia que desenhar não é necessariamente copiar com exactidão. A sua opinião era distinta - desenhar é interpretar a realidade de acordo com a nossa perspectiva. E estou a falar de desenho à vista!

A análise da criatividade tem um paralelo na forma como se analisa uma obra de arte, talvez porque as obras de arte não sejam mais do que expressões de criatividade, um mero subconjunto que só é relevante porque a arte é relevante para nós, humanos, mais do que outros formas de expressão criativa. Mas, dizia eu, existe um paralelo e esse paralelo traça-se no plano da emoção que determinada obra gera ou não a alguém. Nem sequer tem que ser a mesma emoção que levou à sua criação, mas uma emoção é uma emoção e é gerada por cada ser humano de forma diferente e também por isso, o mesmo estímulo pode produzir resultados diferentes em diferentes pessoas.

Por vezes surge alguém no nosso caminho que nos diz sermos muito criativos porque temos imaginação. Outros há que nos chamam idiotas, mas adiante... centremo-nos nos primeiros. Somos imaginativos porque sonhamos e no sonho não há regras. Mas a criatividade socorre-se da imaginação e ultrapassa-a na medida em que concretiza aquilo que a imaginação idealiza. É, mais uma vez, a concretização de uma ideia inovadora numa realidade qualquer, ainda que possa ser abstracta. É a definição de leis para essa imaginação, a criação de uma ligação espaço-temporal que a identifica, que a caracteriza, que a torna "palpável" por um dos nossos sentidos.

A humanidade avança, redescobre-se e redesenha-se por causa desta criatividade.
Imaginamos um destino, criamos um caminho e construímos um meio para lá chegar.
E se o destino estiver viciado, como o indicam os Homens da ciência e os Homens da religião, ainda assim, a realidade é como um livro de aventuras em que no final de um capítulo nos é dado a escolher o capítulo subsequente, sendo que as opções são aquelas que a nossa imaginação nos sugere em dada altura e para as quais encontraremos uma forma criativa de palmilhar o hiato que as separam da realidade.
Até ao fim?
Quem sabe, para lá dele...


3 comentários:

Ana Clara disse...

Caiu aqui uma lagrimita...tu não queres ser o próximo Nobel, não? Mas deixa o ALA primeiro levar o prémio! :)

Gelo disse...

Deixo os nobel para quem os merece. :)

Por falar nisso, recomenda aí um livro do ALA para eu ler... confesso a minha completa ignorância desse autor. Só um, por favor, não me baralhes!

Ana Clara disse...

Podes começar pela «Ordem Natural das Coisas». A ti, assenta-te bem. Devias ser crucificado... É o meu escritor de sempre! :)