Às vezes as pessoas apenas precisam de desabafar. Não precisam de mais ajuda. Apenas de desabafar. Não esperam que tenhamos uma ideia luminosa, uma verdade absoluta, uma saída airosa ou uma solução definitiva. Precisam... de desabafar. É uma forma de sair de um ciclo vicioso. É uma oportunidade para falar alto e, quando as coisas são ditas em voz alta perdem o dramatismo, assumem significados diferentes ou perdem significados auto-impostos por raciocínios circulares. Frequentemente, a vocalização é libertadora per si.
Às vezes precisam de ajuda.
Quem ouve tem uma de duas atitudes:
- ouve, aceita e faz questões sem opinar
- ouve, rebate, diz que não é assim, não será antes assado...
Comecei a escrever pensando ser a segunda opção a "melhor": se o problema é o ciclo vicioso vamos sair dele, vamos encontrar a área mais frágil do ciclo e quebrá-lo. Acabei a pensar que a "melhor" será a primeira opção. Que direito temos nós de presumir perceber o que vai na cabeça de outrém? E ainda por cima, opinar sobre isso? E assumir que os factos que nos estão a ser passados são os factos "de facto" ou estão já filtrados pelas emoções, por desejos e por receios?
Curiosamente, na vida real, que eu tenho uma pequena tendência para racionalizar, acabo sempre por começar na primeira opção e, sem dar por isso, acabar na segunda.
Agora, cuidado!
Que não seja a vontade de ajudar tanta, que se acabe por piorar a situação porque nem tudo é o que parece. Além do mais, estou convencido que a decisão tem que ser desenvolvida internamente ou não será aplicada. Pode orientar-se alguém num determinado sentido mas a conclusão não pode ser dada. Tem que ser construída pela própria pessoa. Só assim existirá um compromisso que ligará o problema à solução.
Isto a propósito de quê, perguntará quem lê. A propósito de duas conversas a que assisti numa esplanada (sim há pessoas que vão para esplanadas falar de problemas pessoais), com diferentes intervenientes, sobre um problema comum: a separação; num caso consumada, noutro uma opção para uma relação ou melhor, para o seu fim, que o fim é sempre uma opção de qualquer relação.
Chamemos Gertrudes à pessoa com problemas e Leopoldina a quem procurava ajudar. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência e, a acontecer, é uma coincidência monumental esta, a de juntar numa mesma mesa, duas mulheres com nomes tão incomuns.
Em ambos os casos a decisão era "evidente" para quem estava no papel de ouvinte (mas pouco), a Leopoldina portanto, e, por isso, avançava qual buldozzer racional a desbravar mato tenrinho e rasteiro: "deves fazer isto", "se fosse eu, fazia logo aquilo"; e era ver a miséria aumentar na cara da Gertrudes.
Lá deixei de ler Saramago e fiquei a ouvir o resto da conversa, logo ali percebendo que a solução que lhe estava a ser oferecida não era a solução que ela precisava. A Gertrudes não precisava que a ajudassem a escolher entre uma solução que não queria e uma solução que não era possível. Precisava que a ajudassem a definir (que não a escolher) uma terceira solução (quem sabe, pode ser uma solução marginalmente diferente das anteriores) e que lhe instilasse alguma confiança de que existe essa outra solução para ser descoberta.
O que me perturbou em ambas as cenas foi a voracidade com que alguém julga em causa alheia. Que fundamentos justificam que uma solução seja melhor que outra para que a aconselhemos? A nossa experiência pessoal, que é diferente da de qualquer outra pessoa? A lógica racional, o que raio é isso numa relação? O que julgamos saber da prática social? A intuição?! Afinal, também quem ajuda tem que perceber que, finda a conversa, uma pessoa sai dali como se nada fosse e a outra, sabe-se lá como.
Por isso a Leopoldina, que estava a tentar ajudar, na realidade não estava a ajudar. Estava, isso sim, a apertar o ciclo.
Enfim, julgo que o melhor que podemos fazer é ouvir e deixar algumas questões que possam fazer o outro pensar e olhar por uma outra perspectiva, para que seja a Gertrudes a encontrar a sua saída, que será sua porque foi encontrada por ela e, por isso mesmo, terá melhores probabilidades de resultar.
E se for preciso voltar à carga pois muito bem, voltemos a ela, que isto de chamar viciosos aos ciclos tem a sua razão de ser.
Ah! Já agora, na mesa do fundo por favor, que é para eu conseguir acabar de ler o Memorial do Convento!
2 comentários:
Curioso é que enquanto escrevias este post, eu estava a assumir o papel de Leopoldina e o pobre do meu amigo Gertrudes estava a gramar com a minha pseudo-sabedoria. Apesar de ter assumido as 3 atitudes durante o desabafo dele, escutar teria bastado.
Em relação a acabares o livro, vou assumir a terceira atitude: escolhe outro livro!!!!
É por estas e por outras que não se pode tomar café com uma "Leoopoldina" qualquer...;) eu escolho a minha querida Dani, mas se for o caso de não ter a mesma "hora de esplanada" que eu... abro o "Memorial" do momento e fixo-me noutras leituras... "Ah! Já agora...." um café para a mesa do fundo:)
*belo texto, Sr.Gelo!
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