O ladro negro do jornalismo revela-se no exagero, no ultrapassar do limite da notícia para o lado do espectáculo degradante.
Há dois níveis de "negrume": o mais baixo é o exagero propriamente dito, pela repetição massacrante dos mesmos factos mas com roupagem nova se bem que, por vezes, nem isso.
Tome-se como exemplo a presumível queda do avião da Air France ao largo da costa brasileira. Terão morrido mais de duas centenas de pessoas das mais diversas nacionalidades, curiosamente nenhum português o que, só por si, poderia justificar uma intervenção mais demorada, dado que a proximidade dos factos com o público provoca um maior interesse. Mas não.
É claro que a notícia é importante. É claro que merece o seu tempo de antena, especialmente por ter sido no Brasil, destino de férias de muitos portugueses mas também por dizer respeito à maior comunidade de emigrantes no nosso país.
Só que os noticiários portugueses, homogeneizados pelo padrão da TVI, para minha infelicidade, agarram no acontecimento e fazem dele um espectáculo circense que consome metade do noticiário. Chamam pilotos actuais e antigos, especialistas em aviação, metereologia, oceanografia, mergulho, novelas brasileiras, etc. (graças a deus não apareceu o Nuno Rogeiro nem o General do costume). Fiquei admirado por não chamaram também médiuns e a Maya; quem sabe, conseguiriam descobrir o paradeiro dos destroços primeiro que as autoridades. Juntam-lhe cartas atmosféricas, oceanográficas e imagens de satélite, tudo bem misturado por computadores e lcd's de alta tecnologia e temos uma notícia looooooooooooooonnnnnnnnnnggggggaaaaaa, contudo sem mais do que meia dúzia de factos. Especialmente, se tivermos em conta que a notícia se repete durante dias com a mesma duração extenuante porque se descobriu um facto novo como, por exemplo, um descendente luso-brasileiro que se safou de morte certa porque não apanhou o avião e agora passou a acreditar que existe uma "entidade superiora", ele que nem sequer era religioso! Fico contente que tenha encontrado um propósito na vida mas realmente, eu passava muito bem sem o saber.
Bom, depois há o nível mais elevado de "negrume". Este é o nível em que não apenas se exagera na notícia mas como se atropela toda a gente sem ter a noção dos seus direitos. E os jornalistas são exímios nisto. O "furo" e a glória que daí advém sobrepõe-se a tudo o resto, aos direitos e aos sentimentos das pessoas, à aflição e ao desespero. Justificam-se normalmente com a avidez de sangue patenteada pelo ser humano e pela necessidade de mostrarem as imagens que o seu público quer ver, sob pena de mudarem para um canal menos escrupuloso na definição de conteúdos. É uma falsa questão claro! Há quem goste de ver pedofilia, assassinatos, violência gratuita, corpos despedaçados. Eu pessoalmente gostaria de ver muitos políticos, empresários e alguns profissionais dos media (entre outros) serem vergastados em público até ficarem com as costas feitas em polpa de tomate. Garanto que este meu desejo se tornaria no programa mais visto em todo o mundo, caso fosse para o ar. E nem por isso tal serve de justificação para o fazermos, mesmo que pudéssemos. Em primeiro lugar está o direito da pessoa, pelo menos quando esse direito não ofender o direito dos restantes (esta é uma questão para um relambório interminável e, por isso, fica por aqui). Mas os jornalistas julgam-se acima de qualquer poder e de qualquer nível de decência, valor humano ou lei. E só por isso se justificam as imagens de dezenas de jornalistas a esmagar os familiares das vítimas para obter imagens e algumas palavras, o sangue e o desespero, espremidos até à última gota de quem já não tem gota de sangue no corpo. Onde está a notícia aqui? A única notícia que eu vi foi a perseguição. Pelo menos tenho que tirar o chapéu a um dos canais portugueses, já não sei se a Sic ou se a RTP1, que se dignaram a dar também essa notícia, juntamente com as imagens e com as palavras que, sofregamente, quiseram rapinar às vítimas da tragédia.
É nestas alturas que eu fico com pena que o presidente do Benfica não convoque uma conferência de imprensa extraordinária. Continuaria a ver uma não-notícia mas pelo menos sempre me ria um bocado...
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