Há duas maneiras de ler um livro. Ou deixamos que o livro nos conduza, o autor ao volante, a definir as curvas, a aceleração e tempos de travagem enquanto nós ficamos sentados no lugar do passageiro e, se o autor for demasiado possessivo, resta-nos ficar no banco de trás, encaixados nas formas ergonómicas da cadeira do bebé, ou conduzimos nós o livro e ao folhear as suas páginas seguramos no volante enquanto o autor nos vai guiando do lugar do co-piloto - curva à esquerda, curva fechada, lomba ou ponte a 100 metros -, mas temos nós a ilusão de dirigir e escolher, de imaginar o autor, as suas personagens e intenções.
Eu gosto dos livros onde sou eu o condutor e o autor é o co-piloto. Gosto dos livros que me fazem pensar mas não apontam uma solução evidente que se possa comprar no quiosque da esquina – por favor dê-me um maço de cigarros, o correio da manhã e a solução aí à direita, essa que está ao lado das pastilhas de mentol, ai já não tem dessas, então dê-me antes a que está por baixo, até é mais barata, sempre poupo algum dinheiro... Gosto dos livros que não acabam, que não impõem um fim apenas para que possamos ter paz de espírito... afinal a realidade que vivemos não se coaduna com fins urdidos em filigrana resplandecente.
Gosto de chegar cansado ao fim de um livro. Nunca entediado! Apenas cansado porque o livro me agarrou de tal forma que fui forçado a despender toda a minha energia para o afastar e fechar as páginas entre a capa e contra-capa, esmagá-las debaixo de uma pilha de outros livros que ainda hoje se agitam quando chego perto deles, porque a história que contavam não acabou e mais do que ficar eu desassossegado por essa ausência de um ponto final parecem estar eles, os livros, irrequietos, a suplicar-me um fim, que lhes escrevinhe as últimas páginas que costumam ficam desnudadas e, se não chegar o espaço, que lhes use as margens até que a palavra os complete e, completos, possam finalmente repousar em paz, enfileirados numa prateleira ombro a ombro com irmãos, primos e filhos bastardos.
Ao pedir-me a defesa de um livro que me tenha marcado estão-me a pedir que defenda a marca que esse livro me deixou e o Ensaio sobre a Cegueira foi um ferro em brasa que me cegou e que me obrigou a tactear as emoções página a página, capítulo a capítulo, até à palavra derradeira, até ao último sobressalto.