Muito se tem discutido nas últimas décadas sobre qual o papel do estado na economia, nomeadamente no que diz respeito ao modelo de intervenção no tecido económico. Há quem defenda a liberalização absoluta das funções produtiva e de serviços, há quem defenda a manutenção de sectores chave no jugo público e há quem defenda um modelo misto ou até conjuntural, assegurando serviços específicos ou garantindo o desenvolvimento de produtos e serviços em que se pretende efectuar uma aposta estratégica.
A crise instalada tem servido de catalizador para uma discussão mais intensa. O Ministro das Finanças anunciou um programa alargado de privatizações. Ainda há poucas semanas atrás Mário Soares fez saber que não concorda com o neoliberalismo de Pedro Passos Coelho receando que o modelo económico actual e o estado social venham a ser aniquilados. Esse receio veio a ser corroborado posteriormente por um estudo do INE que assume a existência de dois milhões de portugueses a viver no limiar da pobreza em 2005, apesar do forte apoio do estado. Ora eu não sou partidário de deitar dinheiro fora em subsídios desnecessários ou mal aplicados mas concordo que um dos papéis do estado é garantir que a sua população possa sobreviver, em primeiro lugar, e crescer, em segundo. Não faz sentido o conceito de Estado sem população, tal como não faz sentido, pelo menos para mim, a existência de um estado que privilegie as classes instaladas no poder e abandone as classes marginalizadas, apenas porque não têm poder económico e são incapazes de sair de um ciclo vicioso que é tanto sua responsabilidade como responsabilidade de quem detém o poder, ou não fossem estes últimos os principais interessados na manutenção do status quo. Ainda não foi há muitos meses que um ministro das finanças foi para o exterior vender a ideia de que é bom investir em Portugal porque temos salários baixos! É preciso contenção mas também é preciso critério.
Trago este tema à baila porque a primeira iniciativa deste governo foi anunciar a privatização da grande maioria das empresas públicas. Aliás, o tema já estivera em cima da mesa na recente campanha eleitoral e não é surpresa nenhuma. Nessa altura, todos os quadrantes políticos rapidamente se prontificaram a desenhar as posições que mais os favorecessem junto das suas clientelas sem que tal significasse um prejuízo político no imediato. O Partido Comunista, como habitualmente, manifestou-se contra qualquer tentativa de privatização, passando e repassando a velha e gasta cassete de sempre. Não querendo glosar sobre a razão, ou falta dela, que os comunistas possam ter, acredito que nem eles próprios sabem porque não querem privatizar. Jerónimo de Sousa, no máximo da sua capacidade de eloquência, avisava que a direita queria tirar a “chicha” e deixar os ossos, referindo-se à suposta privatização de empresas rentáveis tais como a Galp ou a Edp. Teria razão se não estivéssemos no buraco em que estamos e que nos obriga a vender os ossinhos também, assim alguém os queira comprar.
O Partido Socialista, recém saído de uma esquerda muito endireitada e desnorteada, avançou e recuou nas privatizações e não tinha muito a dizer sobre o assunto a não ser manter-se na posição dúbia que lhe garantisse passar um pouco despercebido entre as gotas de água e evitar perder mais votos. Parece-me que o governo socialista foi defensor das privatizações mas esteve sempre refém de pressões várias que as impossibilitaram. Curiosamente, acabaram por ver-se "obrigados" a nacionalizar um banco quando se viu a crise financeira prestes a fazer a sua primeira vítima em Portugal (ou assim o comunicou o governo socialista).
O PSD, e principalmente o apagado candidato Passos Coelho, na expectativa de aproveitar a onda negativa que afogou Sócrates, tratou de medir o pulso ao eleitorado, testando o grau de liberdade permitido pela crise. Os barões do partido e outros clientes afiavam os dentes e salivavam com as privatizações da Caixa Geral de Depósitos e com a Galp e os espanhóis com a Edp. Aos eleitores apenas interessava o combate à corrupção e a privatização pareceu uma boa maneira de o fazer, pelo que legitimaram com o voto a pretensa social-democrata de utilizar a crise para privatizar.
Em boa verdade, neste momento não há uma alternativa melhor para as privatizações por causa das necessidades financeiras do estado, pelos compromissos assumidos, pela máquina pesada que se encontra em andamento. Aliás, se adoptarmos uma perspectiva histórica, de muito longo prazo, não há uma solução única e tudo passa a ser conjuntural. Num momento faz sentido nacionalizar, noutro fará sentido privatizar. Sobretudo há que decidir qual é o papel do estado ou qual é o seu papel num determinado momento. Não sou especialista em história político-económica mas, olhando para trás, talvez as nacionalizações tenham permitido diminuir o desemprego e aumentar, por esse meio o rendimento da população. Só que um dos efeitos colaterais foi o aumento da corrupção, da injustiça e a promoção da incompetência nos quadros do Estado. Hoje, é possível que a crise promova a adopção de medidas de maior eficiência económica e que se liberte a função estatal das garras dos incompetentes, pelo menos, já que estou menos confiante no que diz respeito aos corruptos. Quero, porém, acreditar que um governo com tanta gente fora do radar político possa fazer um bom trabalho também nessa área.
Sou da opinião que o Estado deve minimizar a sua intervenção directa no meio produtivo pela única razão de estar demonstrado que o Estado (ainda) não sabe gerir com eficiência e depois somos nós, contribuintes, que temos que colmatar os desvarios cometidos, de que são exemplo a Rtp, a Refer e a Cp, através de impostos mais pesados. Destas ineficiências há uma que é particularmente obnóxia e que passa pela contratação de amigos para cargos dirigentes, cargos esses, muitas vezes criados à medida. Não só se esbanja muito dinheiro nas mordomias como também se gasta ou perde dinheiro pela incompetência dos actos de gestão. Parece-me que esta razão é suficiente para que o governo tenha carta branca para proceder às privatizações e vai ser-lhe dada pelos portugueses exactamente por que o papel social do Estado deve existir para os necessitados e não para os amigos. Dito isto, acho que o Estado deve sofrer um emagrecimento considerável mas não ser sangrado até à morte. Os serviços que constituem a razão de ser do Estado devem ser mantidos na esfera pública. Refiro-me à Saúde, à Justiça, à Educação e ao Apoio Social. Adicionalmente não gostaria de ver a Caixa Geral de Depósitos privatizada porque me parece importante manter o bastião financeiro português sob o controlo do Estado, especialmente em momentos de crise, como o que atravessamos.
Os dados estão lançados. Esperemos que o Governo tenha o bom senso de não querer ser mais papista que o papa e não proceda a uma liberalização demasiado extensa para o nosso próprio bem.